domingo, 31 de outubro de 2010

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Mais crónicas no i


Relicário de um homem solteiro

Durante os anos adolescentes de beijos na boca e mãos curiosas – “Curti com ela atrás do pavilhão de ginástica” – o soutien tanto podia ser o alarme que impedia o assalto como a relíquia procurada pelo aventureiro. Os dedos afastavam o top, subiam lentamente pelas costelas, inquietavam a pele, respirava-se com mais saliva na boca, e assim que se tocava no soutien disparava a sirene: “Pára. Já disse, pára.” Mas havia um dia em que os dedos cruzavam, por fim, a fronteira do tecido, avançando mais tarde para o fecho com o nervoso com que se enfrenta um penalti. Então, quando a alça resvalava pelo ombro, quando o corpo estremecia como se passasse uma corrente de ar, então o soutien passava a ser a relíquia do peregrino. Para alguns homens, a destreza com que se desmancha um soutien importa tanto como a eloquência dos beijos. E a visão de uma alça, escapando por acidente para fora de um vestido, pode parar o tempo num restaurante, numa pista de dança até mesmo num parque de estacionamento. Tanto romance erótico para nada. Depois de lançar os soutiens, com pedras preciosas, Hearts on Fire Fantasy (6,5 milhões de dólares) e Secret Diamond (5 milhões), a Victoria’s Secret revelou agora o Bombshell Fantasy (2 milhões), fazendo do soutien uma espécie de arma para cyborgs e dando-lhe nome de filme soft porn/cor de verniz. Já não é uma relíquia. É uma acrobacia publicitária, a disneyficação da sensualidade, a morte romântica do artista de mãos para quem importa muito mais a forma como uma mulher se despe do que as jóias que resplandece.

Here comes the sun

Nasceste num desses dias de sol em que a cidade parece água – o Tejo levitando sobre os telhados, resplandecendo nas fachadas. Nasceste num país antigo e com alma cansada, num mundo que, desde sempre, tanto pode ser admirável como devastador. Não te escrevo para que aprendas alguma coisa comigo. Não te vou falar do futuro. Sou demasiado trapalhão com a vida para aconselhar um recém-nascido. Mas saí de casa e na metade mais luminosa e quente da rua havia roupa estendida, o rumor de um rádio fadista num primeiro andar, a alegria de saber que já estás aqui. Não falas, mal abres os olhos e não me podes fascinar com conversas sobre cinema, sobre noites de copos com miúdas que não acreditam em soutiens, sobre a canção dos Beatles que escolhi para banda sonora do teu nascimento. Não podes ainda, como o teu pai, ensinar-me a amizade numa língua que não é a minha, nem recordar essa cidade estrangeira em sobressalto onde me guiou, durante anos, com um coração descobridor e a certeza que podemos ser muito mais do que aquilo que herdamos. Não sabes ainda, como a tua mãe, usar a curiosidade para percorrer países e ouvir aqueles que nunca são ouvidos. Não podes sequer perceber que a tua chegada acontece no momento em que os homens não se entendem, que andam assustados, que preferem o ego, o sonho do toque de Midas, os comprimidos e as pistolas. Não sabes nada e, no entanto, sem uma palavra, sem uma cumplicidade, sem uma memória em comum, fazes de mim uma pessoa melhor. Não consigo explicar-te porquê. Mas sei que faz todo o sentido.


Get a life

Inaugurou-se o sítio justspotted.com, uma rede social que permite aos utilizadores revelar, em tempo real, onde foram vistas celebridades, com direito a mapa-mundo e fotografias. Imagine que encontra Scarlett Johansson na papelaria. Tira uma foto como o telemóvel e faz um post do avistamento da actriz para que os idiotas perseguidores de famosos fiquem a saber que Scarlett comprou a colecção de dedais da Planeta Agostini. O director executivo deste sítio de internet/ pardieiro de bufos, A. J. Asver, diz que não se trata de perseguir celebridades mas de uma forma de os fãs se sentirem psicologicamente perto dos seus ídolos. Asver parece descrever vítimas de falta de afecto a precisar de consolo, mas é dessa maneira que melhor esconde a motivação do site: ganhar dinheiro com a vida privada dos outros. Tenho que admitir que os criadores do justspotted são tão espertos na arte do engano como quem meteu Portugal a usar pulseiras do equilíbrio. Com uma vantagem: não têm grandes custos porque são os fãs que fotografam e perseguem, convencidos pela realidade mediática que lhes diz que não é preciso talento, trabalho ou excelência para serem famosos, acreditando que basta entrar numa casa com câmaras e segredos ou fotografar uma celebridade para serem salvos do quotidiano anónimo. Deviam escutar as palavras de Tyler Durden, em “Fight Club”: “Vocês não são especiais, bonitos ou flocos de neves únicos. Vocês são feitos da mesma matéria em decadência que tudo o resto”. E não é por fotografar Brad Pitt a sair de um WC público que isso vai mudar.

Manual de auto-ajuda

É segunda-feira e na rádio, nos jornais, nas televisões, na mercearia onde se compra o pão fala-se da crise, essa praga tão assustadora e peganhenta como sangue coagulado num pedaço de algodão. Melhor seria ficar na cama, não ir, usar o edredon como líquido amniótico e dormir até que tudo passe. Mas depois descubro, por acaso, que Keneth Waters esteve preso 18 anos acusado de matar um vizinho. E fico a saber que a irmã, Betty, empregada de bar, começou a estudar Direito após a tentativa de suicídio de Keneth na prisão. Durante quase duas décadas Betty tornou-se advogada, criou dois filhos – estudava, nas bancadas, durante os jogos dos miúdos –, passou por um divórcio, ouviu todas as testemunhas do julgamento e encontrou amostras de ADN perdidas durante o processo. Em 2001 provou a inocência do irmão. Seis meses depois Keneth caiu de um muro, perto de casa, e bateu com a cabeça. Morreu. Betty tem 56 anos, é gerente do bar onde foi empregada e voluntária numa associação que ajuda presos falsamente acusados. Não continuou com a carreira de advogada. Não parece amarga, destruída, revoltada. Disse: “Só quero ser avó” Na semana passada estreou “Conviction”, sobre Betty e Keneth. O realizador, Tony Goldwin, disse: “Sempre que me ia abaixo durante o filme, pensava na determinação de Betty.” Nas noites de domingo irei agora colar um post-it na mesa de cabeceira. Quando o despertador tocar, impiedoso como a crise nas manhãs de segunda-feira, vou ler o que escrevi: “Betty e Keneth”. E isso deve chegar para, de imediato, saltar da cama e me fazer à vida.


Breve relato de amor temporário

Ele contou-me que tinham combinado um encontro e que levara laranjadas porque ainda fazia calor. Conheceram-se numa festa. Ele, lubrificado pelo whisky, quase chegou a dançar. Ela, acesa por causa da erva, disse-lhe: “Não fumo tabaco, mas dás-me um cigarro?” Ele disse que a levaria aos fados e ela, de passagem por Lisboa, disse-lhe que preferia um quarto de hotel. Comunicaram em inglês, como nos filmes, e não se beijaram logo, como nos livros antigos. Mas trocaram nomes em vez de números de telefone. Ele disse: “Estás no Facebook?” No dia seguinte iriam encontrar-se no alto da cidade – o romantismo transformou um quatro de hotel num jardim com vista. Ele chegou antes de tempo, percebendo a passagem dos minutos pelos sinos da cidade. “Já reparaste que as igrejas de Lisboa não estão sincronizadas? Se deus não sabe a quantas anda ela também podia chegar atrasada”, disse-me. Ele imaginou o que aconteceria assim que ela chegasse: trocariam piadas, contariam uma história de infância, ele diria “Gosto disto” e ela diria “Posso adiar a minha viagem”, jantariam numa esplanada, a meio da segunda garrafa de vinho ela diria “Leva-me para um sítio com uma cama e um bar” e pela manhã ele teria o braço dormente porque ela ainda dormia no seu peito. Nos dias seguintes alguém iria preferir ficar sozinho. Ele cansado de falar inglês, ela com saudades do cão. Ficariam amigos. Fim. Ele esperou no jardim. Ela não apareceu. Ele disse-me: “Há um lado positivo: vivi numa hora aquilo que, de certeza, ia ocupar-me uma semana. E sabes que tenho de trabalhar”.



Don Draper

Os rapazes, desde pequenos, querem ser outra coisa. Obriguei a minha mãe a fazer-me um fato de super-homem, quis ser o meu irmão mais velho, imitei Marco van Basten no Euro 88 e houve dias que, se me chamassem Mr Sinatra, eu pagaria uma rodada. Mas com o passar do tempo, pensar ser outra coisa, fantasiar, é para alguns tão patético como ir ao pão com um pijama do Batman. É uma pena, porque a imaginação apura a existência ao mesmo tempo que nos alivia de peso, como a primeira descida de uma montanha russa. Eu, por exemplo, ando por estes dias com a certeza que quero ser Don Draper, o protagonista da série Mad Men, passada num tempo em que ainda se usavam chapéus. Não falo apenas da forma como enlaça as mulheres sem precisar de as agarrar pela cintura, das garrafas de álcool duro no escritório, de frases tão graves como os fatos que usa – “O amor foi inventado por tipos como eu para vender collants” –, frases que seduzem secretárias, artistas e clientes da agência publicitária onde é director criativo. Falo também das manhãs em que acorda com a roupa da noite anterior ou se esquece de ir buscar a filha ou tem um ataque de pânico ou aparece bêbedo numa reunião. É que já não acredito, como aos seis anos, que uma pedra verde de outro planeta seja a única fraqueza do herói. Quero ser Don Draper porque ele é a prova da distância entre aquilo que somos e aquilo que queremos ser, e porque depois do fracasso não desiste da fantasia: “Espero agora, serenamente, que a catástrofe da minha personalidade pareça outra vez bonita e interessante e moderna”.


Sobre estar vivo

Se nenhum homem é uma ilha quando os sinos dobram – o terramoto no Haiti, o tsunami no Índico, as bombas num comboio de Madrid – então nenhum homem é uma ilha quando, em vez de sinos que anunciam a desgraça, há canais de televisão a transmitir uma prova de vida. Mais de mil milhões de pessoas acompanharam o resgate dos mineiros chilenos. Num bar em Nova Iorque, conta o “NY Times”, um grupo via televisão segurando cartazes que diziam “Esperanza” e um chileno comentou: “A fé move montanhas e aquela montanha foi movida pela fé”. Um dos mineiros, chegado cá acima: “Estive com deus e o diabo. Ganhou deus, agarrei-me à melhor mão.” Houve quem visse na data uma prova do acaso divino: dia 13, mês 10, ano 10, números que somados dão 33, total dos mineiros. Percebo a fé dos homens mas prefiro encontrar alegria e consolo no engenho, na coragem e na dignidade dos homens que não aceitam ser uma ilha – falo dos especialistas da NASA que colaboraram no resgate, dos engenheiros que estrearam a cápsula e as roldanas ou de todos os mineiros que, sem excepção, queriam ser o último a subir. Mais de mil milhões de pessoas do mesmo lado: crentes, cínicos, adúlteros, filantropos, assassinos, doadores de órgãos, pais que cuidam, filhos ausentes. Gente inteira ou em colapso, gente que não se sentaria na mesma mesa mas que esteve em sintonia por causa dos homens capazes de inventar máquinas salvadoras e dos mineiros que, durante 69 dias, confirmaram a teoria da evolução desta espécie – aquela que diz que a morte existe para que façamos o melhor que podemos com a vida.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Conversa com poeta morto e de bigode


Para ser grande sê inteiro? Nada teu exagera ou exclui? Sê todo em cada coisa? Bonitas palavras, senhor Pessoa, tão inspiradoras como um anúncio da Nike. Mas e se tudo o que exagero e não excluo, se tudo o que sou em cada coisa, se toda essa inteireza nas acções me deixa mais desarrumado que triunfador, mais sozinho que em comunhão, mais mina anti-pessoal que tratado de paz? E quem é o senhor para dar dicas como um life coach? Se bem se lembra morreu de fígado abusado e maleitas diversas na alma anónima. Aceitar as suas sugestões seria como ter lições de condução com um cego.

O senhor fingia tão bem que ainda hoje acreditamos, quando lemos essas coisas que escreveu, que seremos inteiros. Mas não se lembra de também ter escrito que a sua alma caíra pela escada excessivamente abaixo e se partira como um vaso vazio? Nesse caso tinha razão, porque somos muito mais pilha de entulho do que alguma vez seremos inteiros.

Digo-lhe mais, antes que se ponha a beber e deixe de me ouvir: se ponho tudo o que sou em cada coisa, caro poeta, falho mais curvas do que o meu corpo pode aguentar. Se nada excluo tudo devoro. E se nada exagero morrerei de aborrecimento. E agora, pergunto-lhe, o que faço? Pois, nenhum dos seus poemas me ajuda, não há ode ou soneto que funcionem como aquela canção pop que toca na rádio e que, estamos seguros, fala exactamente daquilo que estamos a sentir.

Hoje, nem palavras bonitas nem poesia de auto-ajuda. Hoje digo-lhe na cara que sou muito menos inteiro do que poderia e gostaria de ser. E agora, o que vais fazer acerca disso? O que vou eu fazer acerca disso?

Pois. Se calhar é melhor pedir mais uma rodada enquanto não tomamos uma decisão.

Não se levante, eu vou lá.

Já lhe disse que gosto muito do seu trabalho?

Poetry

Crónicas das últimas semanas, no jornal i


Escritor

Mario Vargas Llosa viajou para o Congo e iniciou o relato desses dias com as palavras de Tharcisse: “O principal problema são as violações. Matam mais mulheres que a cólera, a febre amarela, a malária. Aqui o sexo não tem nada de prazer só ódio.” Tharcise cuida das mulheres violadas pelas milícias hutu fugidas do Ruanda. Llosa escreve sobre a miúda de 15 anos, escrava sexual dos hutu durante cinco meses, na selva, até que a expulsaram por estar grávida. Regressou a casa e um tio disse-lhe que, matando o bebé, seria bem recebida. Llosa escreve sobre o peso dos violadores que esmagaram a bacia de uma criança de cinco anos. Mas em nenhuma das descrições há voyeurismo comercial ou exploração de tablóide. Llosa escreve com o respeito de quem sabe ouvir. Num campo de refugiados ou diante de crianças soldado, o escritor encontra o lugar mais profundo da derrota mas também o lugar onde ainda se combate o fracasso – em Kinshasa, por exemplo, onde Émile Zola tenta impedir as térmitas de comer um museu ou no hospital de Tharcisse, onde a destruição das mulheres não impediu o escritor de reparar que o médico não vê a família há dois anos. Escreve Llosa, sobre a chegada: “Um lugar de beleza natural – havia nenúfares de flores malva na praia onde desembarcámos – e indescritíveis horrores humanos”. O escritor não ganhou o Nobel por esta reportagem no “El País” mas, como ele disse, o jornalismo ajudou-o a escrever livros. Num tempo de jornais anémicos e robotizados, Llosa lembra que o jornalismo só não consegue a nobreza da literatura se não quiser.


‘da-se

O taxista percebe que a corrida é curta, vira a boca de SG Gigante para o lado e morde a primeira sílaba: ‘da-se. O pai desliga a Playstation e ordena que o filho tire as canecas com leite de baixo da cama. O rapaz obedece mas primeiro afasta a franja canina dos olhos: ‘da-se. A mulher informa o marido que há reunião de condomínio. Ele veste o casaco e: ‘da-se. Há um ponto de equilíbrio, entre a confrontação e a resignação, que pode ser definido pela palavra: ‘da-se. É uma espécie de desabafo, uma declaração de princípios No fundo, ao dizer ‘da-se, estamos a dizer: ok, faço o que tu mandas, mas só porque sou obrigado. Por vezes – quando a mãe ordena um recado na hora do jogo, quando o chefe não sai do escritório antes das nove, quando o irmão mais velho monopoliza o computador – prolongamos a última sílaba num assobio – ‘da-sssse – para deixar claro que um dia destes ainda nos revoltamos. Quantas vezes, na adolescência, após uma homilia paterna, dissemos qualquer coisa mastigada, quase muda, mas cheia de raiva: ‘da-se. Quem tem algo a perder fica-se sempre pelo ‘da-se. Sem dúvida que dizer ‘da-se é mais chunga e mariquinhas que dizer a palavra por inteiro, mas assim evitam-se cenas de estalo, divórcios e parricídios. Embora amputada, trata-se de uma palavra necessária para a convivência humana. E se o governo português não enfrentou carros virados na rua e pneus em chamas bem pode agradecer ao carácter de uma nação que há anos, no café com a malta, diante das notícias, na casa de banho da empresa, prefere dizer ‘da-se do que gritar foda-se.


Cem anos de esperança

Estás na rua tão cedo que te lembras das manhãs de aulas, quando os estores subiam inclementes na janela e a tua mãe assegurava que não sairias de casa com ramelas. Mas é feriado e és adulto e vais trabalhar. Estás numa praça com bandeiras do teu país e, como os miúdos que esperam a carrinha da escola, imaginas-te a viajar no tempo cem anos. Estarias na rua, de espingarda na mão, ou ficarias em casa, preocupado com a preservação do teu corpo? Serias um revolucionário ou um comodista? Daqui a nada, vais ouvir um amolador noutro sítio deserto da cidade. Perceberás então que os feriados são muito mais generosos para os miúdos que, ainda na cama, ouvem a flauta solitária sem a melancolia do passado que oprime os adultos. Neste feriado haverá políticos e bandas filarmónicas e comparações entre aquilo que somos e aquilo que fomos. Num jornal, encontras mesmo uma foto dos “Vencidos da vida” – Eça, Ramalho, Junqueiro etc. – e um texto desse poeta açoriano que estoirou os miolos num jardim: “Se não reconhecermos e confessarmos os nossos erros passados, como podemos aspirar a uma emenda sincera e definitiva?” No final da manhã já encontras famílias na rua, crianças aprumadas como embrulhos de Natal, miúdos mais interessados num Happy Meal do que atormentados pelos erros dos pais, avós e bisavós. Serão um dia revolucionários ou comodistas? Não conheces nada do futuro. Mas sabes que, em vez da pistola de Antero de Quental, ainda preferes a placa do jardim onde o poeta se matou. Dizia: “Esperança”.

SOS

Na livraria há uma sala escondida, com bancos corridos, onde os clientes se abrigam para ler enquanto um clarinete nas colunas de som parece algodão caindo na alcatifa. É um sítio de paz onde uma tosse levantaria as sobrancelhas dos leitores. Num dos bancos está um velho que dorme um sono pós-almoço. Tem bigode, bochechas de vinho e um livro de Anaïs Nin na mão. Logo de seguida, estão quatro lolitas literárias – a mais bonita lê “Orgulho e Preconceito”, a mais pequena “Contos”, Eça de Queiroz, aquela que tem aparelho nos dentes segura um livro cor-de-rosa. Chega outro velho. É daqueles homens com unhas compridas, que sacralizam a literatura, julgando alcançar a poesia como ninguém e que, cruzando as pernas, apoiam o pulso no joelho – um gesto que tenta provar a gravidade da sua condição de eleito e que afasta a quarta leitora para outro lugar. O velho de bigode acorda. Os seis corpos, uns adolescentes, outros decadentes, estão agora alinhados no mesmo banco mas, páginas após página, as sinapses de cada um criam coisas diferentes – francesas que gostam de cama, inglesas pudicas, portuguesas loiras e singulares que roubam jóias. Estes leitores estão agora noutro mundo, não percebem sequer o martelo a bater na rua, não se importam com o rapaz mais giro da turma que não respondeu aos sms ou com o filho que deixou de ligar ao pai bebedor de tinto desde que a mãe morreu. Porque quando tudo nos falha – a religião, a política, a terapia, a internet, o amor – só a ficção nos poderá explicar aquilo que ainda não conseguimos perceber. E salvar-nos.



Cicuta

Nós, os portugueses, temos uma apetência para empurrar com a barriga decisões que precisam de rapidez e uma grua – adiamos, atrasamos, contornamos e esperamos sempre que tudo se resolva no último segundo. Nisso, este governo é muito português. Em Fevereiro, Sócrates disse: “Vamos fazer uma consolidação orçamental baseada na redução da despesa e não através do aumento de impostos.” Em Março disse: “O governo vai concentrar-se na redução da despesa do Estado. Mais fácil seria aumentar impostos, mas isso prejudicaria a nossa economia”. Na apresentação do primeiro PEC, disse: “Não haverá aumento de impostos”. Em Junho, disse, em Bruxelas, que não seria preciso reduzir os salários. Mais grave que a retórica do primeiro-ministro nos últimos meses – afinal sempre é preciso aumentar impostos e cortar salários – é a sensação que o governo, com o barco a meter água há tanto tempo, pensou que podia chegar a porto seguro sem mandar nada borda fora. Ou o primeiro-ministro mentiu, com medo de não ganhar as próximas eleições, ou cometeu o grave erro de não perceber, há meses, a necessidade das medidas agora anunciadas quando tantos países europeus já seguiam esse caminho. Se todas estas medidas tivessem sido tomadas no tempo devido, os portugueses talvez se sentissem agora mais empenhados que traídos. Sócrates, o filósofo grego, foi obrigado a beber cicuta por dizer a verdade. Sócrates, o primeiro-ministro português, perderá as próximas eleições por adiar a verdade.

Saturday night rain, crónica no i


Fumando, espera

Ela segura um chapéu-de-chuva amarrotado e as suas roupas, apanhadas pela tempestade, parecem tão tristes como rímel desbotado. Já não chove mas Lisboa continua abocanhada pela humidade, a calçada escorregadia, os pingos saltando dos toldos das lojas para a nuca de quem passa. Ela está na saída da estação de metro, tem roupa de discoteca numa noite de sábado em que a meteorologia lhe sabotou a maquilhagem e o penteado. Fuma e, com os dois polegares, não pára de teclar mensagens como se a lista de contactos do telemóvel a impedisse de sentir-se sozinha. E tens auscultadores nos ouvidos – com toda a certeza uma banda sonora que permite transformar a espera num teledisco. Passam muitas pessoas mas ninguém conhecido, ela olha para todos os lados, a perna direita tão inquieta como antes da oral de estreia na faculdade. Ela é nova e deve ter hora para chegar a casa. Começa a chover outra vez, mas pouco, uma espécie de vapor que se cola na cara como creme Nivea. Ela morde muitas vezes o lábio inferior, tenta abrir o chapéu-de-chuva com duas varetas fora de sítio. Não consegue. Penso que está prestes a chorar mas o telemóvel toca, ela atende e começa a procurar alguém. E é então que sorri, esquecida da roupa fria e do cabelo desarrumado, começando a caminhar na direcção dos rapazes e das raparigas que trazem garrafas e alegria alcoólica no volume da voz. Um rapaz beija-a na boca. Dão-lhe uma garrafa e ela bebe – uma, duas, três vezes. Já não se sente sozinha e segura o cigarro como num poster de cinema. Que a noite te seja leve, miúda.