segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Romantismo tropical contemporâneo


Um conto sobre a travessia amorosa e descontrolada da zona sul do Rio de Janeiro. Também serve de guia da cidade para turistas, hedonistas e portugueses em fuga. publicado no jornal i

Sexta-feira

Praia

Thais não era daquela praia. Thais não pertencia a lugar algum. Thais só disponibilizava a sua atenção - e a boca, o sono, as manobras de ancas - em períodos curtos. Menina moderninha com caprichos de estrela pop. Gostosa e gira para cacete. Mulher planeta que precisa de satélites em seu redor. E eu, com três dias para queimar no Rio de Janeiro e nada a perder, fui todo cortesias quando ela se sentou junto a mim, chamando os nêguinhos das barracas de praia como se estivesse na entourage de D. João VI: "Mais cerveja." E os meninos, como muitos homens diante dela, obedeciam tal e qual lacaios da senhora mais magnífica da corte.

Thais na praia: branca de creme protector, linda como num anúncio da Prada nas glossy magazines, mas entediada com o calor no areal que desfazia os pés; filha de mãe gringa e pai carioca, miúda high fucking maintenance, pronta a abandonar a sobrelotação das areias do Leblon - uma aristocracia de sunga e mamas turbinadas, herdeiros privilegiados do antigo sistema esclavagista com empregados para tudo e mais qualquer coisa, gente geneticamente apurada, nota 10 para a maioria dos corpos malhados no ginásio e abençoados pela sacanagem tropicalista. O Rio vai do erótico ao pornográfico em menos de uma tarde de praia seguida de chopp e cachaça.

Primeiro não foi amor. Foi tesão mesmo.

Thais foi-me apresentada por Fred, um português no Rio sem eira nem beira mas que tinha a habilidade dos malandros: seduzia, encantava, entretinha qualquer festa ou boteco às quatro da matina. E a mulherada achava aquele sotaque português, de génio adiado e biscateiro sobrevivente, uma gracinha. Fred passou-me o cigarro de maconha, enchi os pulmões e rodei o tubinho da paz na direcção de Thais, que se levantou e disse: "Fumei as drogas que tinha que fumar até aos 18 anos."

Thais era mimada e de certeza tinha lido autores malditos antes dos 16. Falou como quem ordena: "Você seria destemido o suficiente para me acompanhar num passeio?" Talvez fosse da cerveja ou da cannabis erectus, mas quis beijá-la como se tivéssemos acabado de sobreviver a um naufrágio.


Calçadão

Por nós passavam os atletas da corrida e das bicicletas e dos skates e dos patins em linha. Pessoas com pouca roupa, homens musculados como halterofilistas, depilados na integra como strippers. Mulheres com bundas de namorada de surfista, rabos-de-cavalo e leitores de mp3 presos no braço. Tanta pele, suor e exercício físico deixaram-me ainda mais inquieto junto de Thais - ela cheirava a creme, a mar, a feromonas magnéticas. Estava cada vez mais apanhado.

Explicou-me as tribos da praia. Mesmo em frente do coqueirão, no posto 9, estava a galera cool e muito jovem que fuma baseados como quem come guloseimas. Mais adiante, antes do posto 8, uma multidão com abdominais definidos e tatuagens, quase todos homens, quase todos gays. Chegámos ao Arpoador. Sentámo-nos na esplanada do Azul Marinho e pedimos caipirinhas. Estávamos em cima da praia e o sol começava a baixar e havia ondas para fazer carreirinhas. Peguei no bloco de notas e escrevi: carreirinhas=pegar jacaré.

Thais: "Está escrevendo poemas de amor?"

Eu: "Poesia é coisa de viado." Escrevi: viado=paneleiro.

Thais: "Lista de supermercado?"

Eu: "Estou a fazer uma lista de palavras que são diferentes aqui e em Portugal."

Thais chupou a cachaça e o sumo de lima pela palhinha, olhou por cima dos óculos escuros que escorregavam para a ponta do nariz: "Diz umas para mim, vai."

Eu: "Nós dizemos palhinha, vocês canudinho."

Thais: "Mais." Enquanto eu lia do meu bloco de notas, ela passou do sorriso para a gargalhada. Atacador=cadarço, retrete=vaso, lixívia=água sanitária, estendal=varal, cuecas de mulher=calcinha, imperial=chopp, charro=baseado, broche=boquete, alfarrabista=sebo.

Thais: "Vamos cair na água?"

Entrámos no mar, o meu corpo abandonado ao turbilhão das ondas, espuma na cara, uma perna raspando no fundo de areia, o ardor da ferida, a alegria de aparecer na superfície, depois de um mergulho, e olhar a praia - Ipanema, Leblon, morro Dois Irmãos, favela do Vidigal, tudo mais bonito por causa da película de luz, caipirinha, maconha e água salgada. Fiz carreirinhas. Thais pegou jacaré. Podíamos ser felizes na praia, com filhos hippies e dieta de fruta. Sempre fui romântico antes de tempo.


Urca

Thais trouxe copos e uma garrafa de cerveja Original, gelada como manda a lei dos botecos. Estávamos sentados no muro, ao lado do quartel, pasmados com o céu azul e cor-de-rosa atravessado por aviões que piscavam luzinhas sobre a baía de Guanabara. Thais tinha fome e pedi comida no Bar Urca: bolinho de bacalhau, de camarão, sardinhas fritas. Mais uma garrafa de Original. Era de noite quando ela me estendeu a mão: "Quer pegar um ônibus?" Foi a primeira vez que nos tocámos. Mais tarde escrevi no bloco como numa biografia: "Urca: onde tudo começou." Acrescentei: "Bom spot para encontros amorosos."

Chopp & Cachaça

Nestas noites é tudo muito rápido. Estávamos no Astor, junto da praia, Thais passando à frente da fila - "Meus amigos estão lá fora" -, avançando pela multidão de gente aprumada e colorida, empregados de farda e bandejas com cerveja. Roubei um chopp no balcão e vi o Fred a sair da casa de banho. Uma morena sorriu-me como se me desse o número de telefone. Tropecei nas havaianas e espalhei-me no meio da sala. Fred bateu palmas. Thais mandou-me um beijo. Levantei-me e fiz uma vénia. Um homem apaixonado não tem medo do ridículo.

Na mesa, lá fora, estavam os amigos de Thais e pratos com ostras e mexilhões, empadinhas de camarão, mignon aperitivo. Os chopps não tinham chegado ao fim e já apareciam mais. Eu, culpa da larica maconheira, pedi um hambúrguer de picanha. Fred mandou vir cachaça para todos: "Tem Valverde?" Depois veio uma rodada de Salineira e outra de Magnífica.

Thais disse: "Vou tomar um banho, mudar de roupa. Nos vemos mais tarde." E saiu de mão dada com duas amigas. Fred deu--me uma cachaça: "Dá para pagares o meu jantar? Fazemos contas amanhã. Valeu, brother." Em seguida apontou para a praia como se tentasse vender um carro que eu já tinha comprado: "Continua lindo, não continua? Vamos arrancar para o Jobi."

Thais apareceu no Jobi com um vestidinho coquete e uma trança e as duas amigas como guarda pretoriana. Levou- -me para a casa de banho, beijou-me e na língua havia um comprimido. Eu disse: "Presumo que não seja para as dores de cabeça." Thais apontou para cima da retrete: "Como se diz isso em Portugal?"

"Autoclismo." Autoclismo=descarga. Riu muito. O ecstasy que tomou antes de mim fazia efeito. Eu disse: "Pensei que não consumisses drogas." Thais pôs-me a mão na boca: "Just feel the love." Não há coração vadio que aguente. Thais, meu amor químico, incoerente, devassa e suspeita de gostar de mulheres. Saiu com as amigas, deixou-me um endereço no bairro do Humaitá e um "Passa lá mais tarde". Fred apresentou-me ao dono do Jobi, boteco clássico, propriedade do senhor Narciso e irmão, portugueses de Penafiel. Falámos de bola. Bebemos mais e Fred perguntou: "Tens guita para o táxi? Vamos lá à festa."

Porque a minha memória não me permite mais que caras desbotadas, revelo apenas que curti com Thais como um adolescente no sofá com os pais em viagem, que ela foi várias vezes à casa de banho com as amigas, que uma delas entornou um copo na minha braguilha e que acordei a olhar para o Cristo Redentor.

Na janela vi o verde da selva no morro e o sovaco do Senhor Jesus de braços abertos lá em cima. Não estava sozinho. Fred fazia colherzinha comigo. Dei-lhe um tabefe: "Deixa de ser bicha." Fred abriu os olhos desidratados e lamentou o regresso ao mundo dos atormentados pelo calor: "Puta que o pariu." Acendeu um cigarro e "Bora pequeno-almoçar?"


Sábado

Café da Manhã

Paguei o táxi que nos levou do Humaitá ao Leblon. Já havia fila para o Cafeína, o Garcia & Rodrigues, o Talho Capixaba. Fred arranjou mesa na esplanada da padaria Rio Lisboa. Pedi café com leite, pão na chapa, suco de laranja. Fred disse: "Não tenho pachorra para a turminha do brunch com os seus jornais e famílias pipoca." Li outra vez o bilhete que Thais deixara no bolso das minhas calças: "Santa Teresa, almoço no Mineiro, 16h00. Tem saudades?"

Fred disse: "Vamos curar a ressaca." Em menos de cinco minutos estávamos a dar mergulhos. No roteiro da recuperação seguiu-se água de coco e suco de melancia no Polis Sucos. Fred disse: "Vamos tomar um duche, tenho umas amigas que te querem conhecer." Fred, o manipulador: "Pagas o suco que eu vou carregar o telemóvel?"


Santa Teresa e samba na Lapa

Saímos da praia com as amigas de Fred. Uma paulista advogada, sardenta e feroz tirou-me o telemóvel da mão e gravou o seu número: "Se passar em São Paulo pode ligar." Ela queria saber quem eu era, fez perguntas, encostou-me. Apresentei o show da minha cronologia pessoal: estudei na faculdade, fiz horas extraordinárias no emprego sem estrebuchar, sequei o cabelo, tive carro, comprei roupa em Londres, visitei o Louvre, aparei os pêlos púbicos, li metade de um livro do Paulo Coelho. Dois meses antes de chegar ao Rio o meu chefe propôs um acordo: "Downsizing, sabes como estão as coisas, nada de pessoal, ainda levas algum contigo." Estava farto do sistema e do regime e das manchetes dos jornais. O meu plano não tinha funcionado. O plano dos meus pais para mim não tinha funcionado. Depois de uma semana a ver programas no Travel Channel e no National Geographic, vendi o carro, larguei a casa e fui para a América do Sul. Rebeldia fora de horas. Hedonismo tardio. Desta vez não tinha destino nem vontade de chegar a algum lado. Se é para andar sem rumo que seja para curtir - assim de simples. Os ricos que paguem a crise. Fuck you very much.

Em Santa Teresa havia fila no Mineiro. Thais estava outra vez aborrecida, mais interessada no iPhone que nas minhas mãos carentes. O namoradinho electrónico deu, por fim, notícias. Ela leu a mensagem e disse: "Tenho uns amigos almoçando no Espírito Santa, é aqui do lado." Fui atrás, esperançoso, palerma, canídeo. Fred ficou no Mineiro com as amigas, olhou para a paulista, para a Thais, avisou: "Estás a apostar no cavalo errado."

Thais passou de menina birrenta a diva adorada assim que entrou na varanda do restaurante. Na mesa havia moqueca de banana, peixe de rolo, namorado da sereia. Bebi, comi e pensei que podia ficar naquele bairro de casas estioladas, com o som do bondinho despejando turistas, uma Lisboa tropical, baterias em vez de guitarras, mulatas e gringos e cerveja de garrafa bebida na rua. A vida seria cada vez melhor.

Mas lá estavam as duas amigas de Thais, vigilantes e empenhadas em oferecer abracinhos, mãos dadas, vem cá Thais para te darmos um beijo. Escrevi no bloco: xôxo=selinho, mulheres bi=gillette, noite louca=balada. Fred apareceu ao fim da tarde com as amigas (a paulista) e anunciou: "Vai rolar balada."

Noite dentro pela Lapa: andar na rua com carros da polícia, putas, travestis na esquina sentados num banquinho como os plastificadores de documentos no Rossio, malta sem t-shirt, muita bebedeira, a inevitabilidade de mover o corpo assim que começa o samba num desses bares com sobre- aquecimento, roça roça e música ao vivo.

Horas mais tarde, Thais abraçou-me a pedir colo, fraca nos joelhos e com as havaianas na mão: "Quero a minha cama." No táxi dormiu e respirou no meu pescoço. Em casa levei-a para o duche e lavei- -lhe os pés encardidos do samba descalço. Ela disse: "Não vai embora para Portugal amanhã, fica mais um tempo." Sobre o sexo em países tropicais, com ventilador no tecto e humidade nos lençóis, tenho a dizer: todos deveriam experimentar.


Domingo

Thais vivia no Baixo Gávea e saí para comprar o pequeno-almoço. Espreitei o jornal enquanto esperava pelos sucos. Domingo com 32 graus de máxima. Estava pronto para mudar a viagem e fazer praia, talvez passar na Academia da Cachaça, um banho nocturno no Arpoador com a minha namorada carioca.

Entrei em casa e Thais dedilhava o iPhone na sala. Demorou a perceber que estava ali um tipo à espera de qualquer coisa. "Tenho de me arrumar. Brunch com as minhas amigas no Jardim Botânico." O coração vadio parecia um bonequinho de peluche assustado. Ficou ainda mais mariquinhas quando ela avançou para o quarto e, sem olhar para trás, perguntou: "A que hora mesmo é o seu voo? Tem de sair uma hora antes pelo menos por causa do trânsito." Bye bye amor carioca. 20 minutos depois entrei no apartamento do Fred.

Não estou aqui para enganar ninguém. Fiquei fodido, melancólico, um soco na barriga, o chão a fugir, vontade de partir para a bebedeira directa e para o flirt dos botecos com transa como bónus track.

Fred, o guru da auto-ajuda, disse: "Conheces a gaja há dois dias e já tens nomes para os filhos? Isto não é uma novela. Era suposto esta viagem fazer-te bem à cabeça. Relaxa e aperta aí um." Enrolei mas não fumei. Continuou: "Man, eu sou um pouco safajeste, mas, foda-se, a malta hoje quer tudo agora, mimados do cacete. Vivem na superfície das redes sociais e porque trocam um vídeo e gostam do mesmo filme já são Romeu e Julieta. Puta que o pariu mais à internet e ao Estado social e ao cabo e aos hiperactivos do sofá e aos sms eróticos. Toda a gente confunde emoções com sentimentos e quer viver com banda-sonora e filhos loiros. Escuta as palavras do mestre Zeca Pagodinho: deixa a vida te levar." Fred, filósofo contemporâneo de pacotilha, fumador de maconha antes do meio--dia, realinhou os genitais nos boxers e expeliu fumo para o tecto: "Vamos para a praia."

Os corações vadios têm um extraordinário poder de recuperação. Liguei à paulista: "Estou a pensar ir a São Paulo uns dias." No bloco de notas escrevi: sempre fui um romântico antes de tempo. Depois sublinhei a frase "Não foi amor. Foi tesão mesmo."

Sobre o lanche


crónica no i, é só voltar a clicar. estou de volta ao blog.