segunda-feira, 21 de março de 2011

Luz ao fundo do túnel?

Relicário de um homem solteiro, nova crónica, semanal, no suplemento LiV, do i, todos os sábados


O amor é sexualmente transmissível

1
Um professor da faculdade, charmoso, elegante, poeta do amor, disse-me num jantar que o bom sexo fideliza, que duas pessoas podem estar sem se ver anos e que, num encontro inesperado, reaparece o mesmo desejo de comer vivas as feromonas do outro. O meu professor abria portas de restaurantes para as suas namoradas e beijava mãos femininas e escrevia sonetos de amor. Eu era aluno e ele professor. Ele devia ter razão.

2
Muitos anos mais tarde, na minha primeira visita ao Rio de Janeiro, encontrei um livro: “Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios.” O seu autor, Marçal Aquino, escolheu como epígrafe a frase que roubei para o título desta crónica: “O amor é sexualmente transmissível.” Nesta história é a personagem principal, um homem, que fica preso ao sexo esplêndido de uma prostituta. O narrador avisa logo na primeira linha do romance: “Não adianta explicar. Você não vai entender.” Ele deseja Lavínia, o corpo de Lavínia, tudo o que fica a sul do trópico do umbigo de Lavínia: “Ela guiou o jato do chuveirinho para o púbis. Desfez a espuma não o sonho.” Lavínia: uma Julieta romântica do Pará, puta em vez de aristocrata, meretriz de garimpeiros e pastores evangélicos, perdição do narrador, que acaba zarolho por causa da paixão, da tesão, da sova que leva em honra de Lavínia. Na última frase do livro, o narrador corrige-me. Parece que não é nem paixão nem tesão nem uma pala negra no olho que deixou de estar: “Eu chamo de amor.”


3
Outro homem, outro brasuca, outro escritor: João Paulo Cuenca. Esteve em Lisboa para lançar o romance “O único final feliz para uma história de amor é um acidente” e ouvi-o falar da construção do amor. No livro, há um poeta japonês apaixonado por uma boneca feita por por encomenda. Pagou milhares de dólares mas delicia-se com os ossos salientes das omoplatas e outros extras. Estas bonecas existem mesmo e Cuenca deu-se ao trabalho de visitar armazéns e estudar catálogos, sabendo todos os detalhes sobre modelos, texturas, cores, miligramas de silicone em cada mama.
Em Lisboa, Cuenca falou da construção do amor. Cada um escreve a sua história, a sua narrativa, os momentos de close up. Cada um tem a sua boneca japonesa.
Nesse dia escrevi no caderno de notas: Luxúria está no código genético. Amor precisa de construção. Dá muito mais trabalho.

4
Ela canta: “Quero comer Caetano.” Ela também canta, num vídeo no youtube, uma canção de Roberto Carlos. Mas ela é mulher e por isso a letra da canção passa a ser outra coisa: “Estou amando loucamente a namoradinha de um amigo meu.” No final dessa versão, faz um habilidoso jogo de palavras e acaba a cantar: “Porque não comê-la?” Falo destas palavras na língua lasciva de Adriana Calcanhoto porque lá, no Brasil, o amor é mesmo sexualmente transmissível. E a construção do amor também.
Rio de Janeiro: pele bronzeada, shorts, corpo molhado de mar, pés descalços, batucada que estremece, caipirinha nos lábios e a ginga da língua enquanto as coxas se roçam. É uma sociedade muito erotizada. Paquera é prato do dia. E na música, na rua, na literatura, ama-se muito. Fode-se mais.

5
Na minha segunda viagem ao Rio já percebi melhor o que, anos antes, me dissera o professor dândi. Naquela mesa de jantar, há tantos anos, eu era um estreante na faculdade, menino de colégio católico, com três irmãos rapazes e uma limitada experiência de luxúria ou amor. De forma prosaica mas sincera, o que eu ouvi foi isto: se um homem for uma boa cama a mulher fica caída para sempre. O que o professor me quis dizer: que há combinações de pele e cama que nem o tempo desfaz. E isso funciona para homens, mulheres, amantes de bonecas, mártires de Lavínia e todos os construtores do amor.

6
Não é preciso viajar para o hemisfério sul, passar dez horas num avião, e aterrar no Rio de Janeiro para observar o comportamento dos humanos. Mas no Brasil o desejo é mais despojado, mais aqui e agora, tão natural como fruta a crescer nas árvores. Quem deseja tem menos vergonha. Isso torna mais fácil a tarefa do observador. E mais perigosa.


7
Um amigo brasileiro, há 20 anos a viver em Portugal, conta-me que no Rio se apaixona várias vezes entre a praia e o boteco. E esta é uma das características do homem solteiro. Confunde luxúria com amor romântico, declara vassalagem ao púbis cheio de espuma de Lavínia, escreve poemas a bonecas japonesas, julga-se apaixonado pela namorada do amigo. Mas talvez haja uma atenuante para esta confusão, para a contínua e insistente tentativa de construir o amor a partir de uma boca, de uma frase, de uma noite de sexo. E talvez haja uma atenuante para a soberba de acharmos que há alguém que nos irá desejar para o resto da vida – tal como nós a desejamos. É nesta contínua e desgovernada busca, “entre colchões e trambolhões” – como canta o romântico Palma – que o homem solteiro perpetua a possibilidade do amor, que continua a acreditar, que não se torna nem amargo nem desistente nem conformado. Ou, como escreveria o apaixonado de Lavínia: “Uma reserva de sonho contra tudo o que não é doce, sutil ou sereno.”

“Eu chamo de amor.”

sexta-feira, 11 de março de 2011

Anita vai à manifestação, hoje no jornal i


Anita já não é menina nem ingénua. Anita é adulta. Mas não acha que sabe tudo nem é especialista em Finanças Públicas. Estudou na universidade e fala três línguas. Usa botas de salto, quer ser mãe e não é membro de coisa alguma – nem mesmo de um ginásio. Anita vai à primeira manifestação da sua vida – tirando aquela vez, em Nova Iorque, em que deu por si no meio de um protesto contra a invasão do Iraque. Anita não gosta da redução da realidade a definições como “Geração à Rasca” ou “Deolindos”. Isso é trabalho para publicitários ou criadores de tendências. Anita não é a Barbie. Trabalha há dez anos a recibos verdes e tenta ser organizada. Por isso, comprou um caderno. Nele escreveu as razões que a levam a manifestar-se:

1
Anita não tem soluções engenhosas para os problemas de Portugal, mas sabe que esteve parada demasiado tempo. Está determinada a fazer mais.
Tomar consciência das metástases do país foi o primeiro passo para a acção – e as metástases têm sido tão analisadas, evidentes e repetidas, que ela entende bem o perigoso estado de saúde do país.

Anita não grita apenas porque sim. Não é parva. Informa-se.
O segundo passo foi perceber que nunca tinha participado numa manifestação, que o seu direito de reclamar, denunciar, debater não se limitava aos amigos, blogs, redes sociais e comentários de leitores nas edições online dos jornais. Anita acredita que esta manifestação pode ser importante para mudar o paradigma nacional do comodismo, da irresponsabilidade, da postura “que se foda o outro e o que vem a seguir”. Esta manifestação pode ser uma forte declaração de intenções: queremos ser melhor que isto, mais limpos, mais competentes, queremos ser melhor do que fomos até agora. Esta manifestação pode ser a pré-primária da participação e da educação cívica para muita gente: ter sentido de comunidade, pertencer, não estar sozinho. Mexer o rabo.

2
Esta não é uma manifestação para consertar Portugal ou os portugueses – as manifestações consertam alguma coisa? Uma manifestação não é um caixa de ferramentas, um think tank, um programa de governo. Esse não é o seu propósito. E para os que têm medo dos aproveitadores, demagogos e pré-tiranos, Anita tem a dizer que esta manifestação não trará nem o primeiro ditador europeu do século XXI nem D. Sebastião. Os malfeitores e os populistas estarão lá, como estiveram na Alameda e na praça Tahir, mas Anita não acredita em líderes enviados pela providência nem em soluções fáceis. Anita já não precisa que lhe ensinem a olhar para os dois lados antes de atravessar a estrada.

3
Anita está cansada da crispação, do sound bite, do spin das notícias. E acha que há uma realidade – produzida pelos políticos, pela comunicação social e pela voragem colectiva de informação – que é teatral, por vezes infantil, e que é dada ao drama e ao espectáculo. O país anda confuso como a vítima de um AVC diante de uma maratona de telenovelas. O que é real e o que é jogo?
Anita, talvez recuperando a ingenuidade do tempo em que protagonizava livros infantis lidos pela sua geração, acredita que esta manifestação pode ser uma forma de perceber que, apesar das diferenças, é mais importante o regresso ao bom senso, ao discurso ponderado e à união das vontades. Se os partidos não se entendem entre si, incapazes de abdicar deles em favor do país, enrolados na sua própria teia narrativa e eleitoralista, o povo dá as mãos (por vezes, Anita tem surtos de PREC, mas é mulher sofisticada e gosta de coisas boas).

4
Anita, que já namorou rapazes de outras nacionalidades, gosta de diversidade: muitas das pessoas que conhece, e que irão manifestar-se, vão fazê-lo por motivos diferentes: justiça empenada, corrupção impune, precaridade prolongada, derrapagens orçamentais, despesismo, clientelismo etc. A lista de erros e desperdícios é longa e levou os 20 últimos anos para estar pronta. Cada um terá as suas razões para estar na manifestação, mas há um propósito comum. Isso interessa a Anita, que poucas vezes na vida sentiu esse propósito comum.

5
Anita pode até dizer que não se importa com o paternalismo dos mais velhos, o desdém dos comentadores, os atestados de estupidez passados à sua geração. É mentira. Anita irrita-se com a petulância daqueles que acham que sabem tudo e que são donos da verdade, subestimando e cuspindo nos seus filhos como os pais fizeram com eles. Por isso, acha que a manifestação será uma boa maneira de mostrar que nós, os filhos mimados da democracia e do cartão de crédito, não somos tão trastes nem patetas como nos julgam. Anita gosta de tolerância e inteligência. Não está interessada em insultar polícias, incendiar carros ou comer gelados com a testa.

Anita, como tantos outros, está pronta para sacrifícios e para apanhar as canas nos próximos anos. Sabe o que aí vem. Não é, já aqui se disse, parva. Mas precisa de um rumo, de uma mudança de pele colectiva. Anita já não é ingénua. Não é por isso que vai deixar de ter sonhos e de sair à rua.

Nem rasca, nem à rasca, nem Deolinda nem interessada no Festival da Canção nem manipulável por partidos ou demagogos ou alienígenas. Anita, por sua própria cabeça, vai levar as suas botas de salto à manifestação.

quinta-feira, 10 de março de 2011

A luta é alegria


Crónica sobre como um megafone irrita muita gente.

Esse lugar em ti


Crónica sobre o lugar estranho do amor.